A evidência de que uma melhor Saúde nas espécies produtoras de géneros alimentícios desenvolve o potencial de obtenção de proteína animal em maior quantidade, com qualidade e segurança é atualmente aceite pelos produtores, técnicos e médicos veterinários assistentes.
Assegurar uma Boa Saúde Animal das espécies produtoras de géneros alimentícios, como é o caso dos suínos, é um processo complexo no qual intervêm diversos fatores como a alimentação, o alojamento, o maneio, o bem-estar animal (e das pessoas) e a prevenção e o tratamento de doenças. A interação dos seres humanos – produtores, técnicos, tratadores e médicos veterinários – com os animais é fator crítico porque são estas pessoas que asseguram a implementação de um processo de produção de acordo com as boas-práticas de cada fator.
A descoberta dos antimicrobianos possibilitou uma mudança radical na Saúde Humana e posteriormente na Saúde Animal, sendo evidente que a capacidade de tratar a doença causada por micro-organismos permite melhorar o estado de Saúde dos animais.
Resistência a antimicrobianos, enquadramento legislativo e disponibilidade
A existência de microrganismos resistentes a antimicrobianos é um processo natural, aparentando ser tão antiga quanto a existência desses mesmos microrganismos. Dito isto, é evidente que a utilização intencional e generalizada de antimicrobianos, na Saúde Humana e na Saúde Animal, está na origem do aumento da prevalência de microrganismos resistentes e no surgimento de microrganismos multirresistentes (resistentes a três ou mais grupos de antimicrobianos). Este facto tem um impacto relevante na Saúde Pública, existindo um número crescente de artigos científicos que indicam a resistência antimicrobiana (RAM) como causa de um número de mortes crescente, tendo sido estimadas mais de 33 mil mortes e 874 mil anos de vida saudável perdidos por ano, na Europa. Sabe-se ainda que a RAM pode ser transmitida entre humanos, animais e o ambiente, através da cadeia alimentar ou por contacto direto, e está demonstrada a correlação entre o uso de antimicrobianos na produção agropecuária e a RAM.
Tendo em conta a relevância da RAM, a União Europeia (UE) criou um sistema de monotorização do consumo de antimicrobianos na produção animal (ESVAC – European Surveillance Veterinary Antimicrobial Consumption). Embora o valor global de venda (mg de princípio ativo/unidade animal) de antimicrobianos em animais de produção tenha diminuído na UE e em Portugal durante os últimos anos, o nosso País mantém-se no grupo dos 5 maiores consumidores de antimicrobianos pela produção animal, representando a utilização em suínos a maior fatia das vendas, com 35,3% do total. Consciente deste problema, a UE no passado proibiu a utilização de antimicrobianos como promotores de crescimento e, mais recentemente, estabeleceu a como meta redução em 50% da utilização de antimicrobianos para animais de produção até 2030 no Pacto Ecológico Europeu (Green Deal), onde se inclui a Estratégia do Prado ao Prato (Farm to Fork Strategy).
A EU, de forma a implementar a estratégia referida, criou um conjunto de legislação, em especial os Regulamentos UE 2019/06 (medicamento veterinário) e 2019/04 (alimentos medicamentosos), que aumentam a exigência para prescrição e a utilização de antimicrobianos em animais de produção e detalham as responsabilidades acrescidas dos produtores e dos médicos veterinários.
Para além da legislação da UE, o governo da Républica Portuguesa, no âmbito do Plano Estratégico da PAC de Portugal (PEPAC), criou incentivos para o uso racional de antimicrobianos em suínos e em bovinos de leite (Portaria 54-E/2023 do Ministério da Agricultura e Alimentação), os quais são atribuídos aos produtores no caso de estes alcançarem os objetivos de redução do consumo de antimicrobianos nas suas explorações.
Um outro aspeto a considerar é a disponibilidade de antimicrobianos eficazes. Devido ao custo do desenvolvimento e à regulamentação exigente para o registo e posterior uso dos antimicrobianos em animais de produção, não é expectável que surjam num futuro próximo novos antimicrobianos para os quais existam poucos micro-organismos resistentes. Consequentemente, é crítico preservar a eficácia dos antimicrobianos atualmente disponíveis, pelo que aumentarão no futuro, provavelmente as restrições ao uso na produção pecuária. Logo, a promoção do Uso Racional de Antimicrobianos é urgente.
O Plano de Recuperação e Resiliência e o Projeto USAM SuLei
O Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), na sua Componente 5, Agenda de Inovação para a Agricultura 2020-2030, Iniciativa Emblemática 2 – Uma Só Saúde – pretende estimular sinergias intersectoriais para, entre outros objetivos, harmonizar modelos para a avaliação, previsão, prevenção e gestão de riscos de origem animal e das RAM, bem como a formação dos agentes do sector e a sensibilização da sociedade civil.
Enquadrado no PRR Iniciativa Emblemática 2 – Uma Só Saúde – foi lançado em 2022 o Concurso n.º 13/C05-i03/2021 – Projetos I&D+I – Uma Só Saúde, no âmbito da Agenda de Investigação e Inovação para a Sustentabilidade da Agricultura Alimentação e Agroindústria (Investimento Re-C05-i03).
Lideradas pelo Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar (ICBAS) da Universidade do Porto, um conjunto de 12 entidades que englobam a academia, entidade públicas e de investigação, entidades do sector do leite de bovino e, em particular do sector da suinicultura – a Federação Portuguesa de Associações de Suinicultores (FPAS) e a Sociedade Científica de Suinicultura (SCS) – submeteram a candidatura do Projeto USAM SuLei – Uma Saúde para a Utilização Segura de Antimicrobianos na Produção de Suínos e Leite de Bovino, o qual foi aprovado em 4 de Maio de 2023 e tem como data de conclusão 30 de Setembro de 2025.
Objetivos do Projeto USAM SuLei
O Projeto USAM SuLei é desenvolvido em 2 sectores relevantes da produção animal nacional – Bovinos de Leite e Suínos – que tendo especificidades muito diferenciadas, partilham a necessidade da implementação do uso racional de antimicrobianos, com a consequente redução da sua utilização bem como a manutenção da sua eficácia, ligado necessariamente à obtenção de produtos de origem animal seguros.
O Projeto USAM SuLei tem por objetivos:
- Criar um Sistema Integrado de Apoio à Decisão (plataforma WEB) dos médicos veterinários e dos produtores sobre a prescrição e uso de antimicrobianos (Fig. 1, AT2).
- Criar um sistema de Boas Práticas (Fig. 1, AT3) – Biossegurança, Bem-Estar, Uso de Antimicrobianos – destinado aos médicos veterinários e aos produtores para promover a saúde dos efetivos, a utilização responsável de antimicrobianos e, consequentemente a redução do uso dos antimicrobianos, sustentado em Planos de Ação de saúde e bem-estar animal (Fig. 1, AT4) personalizados para cada exploração.
- Formar os médicos veterinários e produtores na utilização deste sistema (Fig. 1, AT6).
- Implementar um Sistema de Monitorização do Desenvolvimento de Resistências a Antimicrobianos nas Explorações que permita acompanhar a evolução destas ao longo do tempo e relacioná-las com o perfil de antimicrobianos usados (Fig. 1, AT5).
- Disponibilizar informação relevante, em formato anonimizado, que contribua para a definição das políticas nacionais de redução do consumo dos antimicrobianos e avaliação dos impactos respetivos (Fig. 1, AT2).
- Produção de conhecimento e sistemas de monitorização sobre efeitos na saúde dos animais de tipos de dieta específicos, seu impacto sobre a emissão de gases de estufa (GEE) e da dinâmica das condições ambientais das explorações (Fig. 1, AT5).
Figura 1: Esquematização Projeto USAM SuLei. Áreas da figura com fundo azul são resultados do projeto.
Funcionamento do Projeto USAM SuLei – Plataforma, Plano de Ação e Boas Práticas
O Sistema Integrado de Apoio à Decisão (plataforma WEB) a criar (Fig. 1, AT2), é peça central do projeto. O sistema irá recolher informação ao nível da exploração (tipologia de produção, censo animal, produtividade, alimentação, ambiente, saúde animal, eficácia terapêutica, biossegurança e bem-estar), do matadouro (lesões/rejeições) e da plataforma eletrónica de prescrição médico-veterinária (PEMV) sobre o uso dos antimicrobianos, possibilitando a caracterização da exploração, a criação de índices e a comparação com o respetivo padrão. Após identificar os diversos pontos de melhoria coligidos numa única plataforma, será possível desenvolver um Plano de Ação adaptado a cada exploração, com o intuito de melhorar a saúde do efetivo e originar uma redução na utilização de antimicrobianos.
O Plano de Ação será construído para cada exploração a partir da escolha pelo produtor e pelo médico veterinário dos pontos de melhoria objeto de ação e das medidas corretivas a implementar. Incluirá um cronograma de implementação, acompanhamento e revisão. A informação recolhida durante a implementação do Plano de Ação será introduzida no sistema integrado de forma a poder acompanhar a evolução do Plano de Ação e a identificação de desvios e medias corretivas (Fig. 1, AT4).
No que respeita às Boas Práticas de Biossegurança, Bem-Estar e Uso de Antimicrobianos, após seleção das práticas adaptadas à realidade nacional, serão integrados no plano de Ação de cada exploração e monitorizada a sua implementação (Fig. 1, AT3).
Todo o processo de definição da informação a recolher pelo Sistema Integrado de Apoio à Decisão, das Boas Práticas, dos índices e metas, das medidas corretivas padrão e dos quadros de resultados do sistema será objeto de validação por grupos focais (um para o sector dos suínos) constituídos pelos médicos veterinários responsáveis pelas explorações envolvidas. Estes grupos focais terão um funcionamento do tipo colaborativo, baseado no ciclo de melhoria contínuo (Fig. 2; proposta – debate/validação – implementação/monitorização – avaliação/desenho medidas corretivas – nova proposta).
Fig. 2: Esquematização do ciclo de melhoria contínua
O Projeto USAM SuLei envolverá 25 explorações de suínos, de tipologia variada (ciclo fechado, sítios 1 e 2, engordas), representativas da produção nacional e os respetivos médicos veterinários responsáveis.
Resultados esperados do Projeto USAM SuLei
A implementação de Planos de Ação no universo das explorações envolvidas irá permitir validar um Plano de Ação Padrão que possibilite a melhoria da saúde e a redução do uso de antimicrobianos nas explorações suinícolas.
Em relação às Boas Práticas de Biossegurança, Bem-Estar e Uso de Antimicrobianos, a sua integração nos Planos de Ação permitirá validar a sua relevância e a definição de Boas Práticas Integradas Padrão aplicáveis à suinicultura nacional.
Sendo um dos objetivos do Projeto USAM SuLei a formação, decorrerão ações de formação para médicos veterinários e produtores sobre a implementação do Plano de Ação Padrão e resultados expectáveis, bem sobre as Boas Práticas Integradas.
No que respeita à divulgação e publicação, está previsto que no final do Projeto USAM SuLei sejam disponibilizados manuais de Boas Práticas Integradas e o Plano de Ação Padrão (incluindo check-lists).
Impacto esperado do Projeto USAM SuLei na Suinicultura
A utilização do Plano de Ação Padrão adaptado à realidade de cada exploração, assegurará uma aproximação comum às diversas explorações suinícolas, com o objetivo de obter uma produção com menor uso de antimicrobianos.
Por outro lado, a informação recolhida permitirá consolidar informação nacional sobre os índices produtivos, o bem-estar, a biossegurança e a saúde animal, a qual poderá ser utilizada para comparar, em formato anonimizado, uma dada exploração com as médias e os melhores percentis nacionais, facilitando a identificação de pontos de melhoria e promover a evolução do sector.
Finalmente, após a validação do Sistema Integrado de Apoio à Decisão (plataforma WEB), os médicos veterinários e os produtores terão uma ferramenta que, reunindo no mesmo local um conjunto de informações críticas normalmente dispersas, auxiliará o processo de toma de decisão sobre a utilização de antimicrobianos e a gestão holística da saúde das explorações suinícolas, no sentido da sustentabilidade do sector.